A invenção do sexo binário

Regiane Martins
4 min readOct 6, 2021
Imagem de Scott Web

Mesmo as pessoas tendo o entendimento de que gênero é construção, frequentemente ainda afirmam o sexo como algo fixo. As definições de sexo, porém, mudam drasticamente ao longo do tempo. O historiador Thomas Laqueur nos lembra que “as diferenças que fazem a diferença são determinadas historicamente.” Em outras palavras, o que as pessoas veem e elevam aos status de uma categoria diferente tem a ver com o contexto cultural e político. Ele traça dois milênios de pensamento sobre o sexo, demonstrando como o Ocidente mudou de um modelo “unissex” para um modelo “binário do sexo” no final do século XVIII e início do século XIX.

Antes disso, homens e mulheres eram vistes como formas diferentes do mesmo sexo. A ideia de que tudo no Universo tinha um temperamento: coisas que eram quentes e secas (como o Sol) eram consideradas como masculinas e coisas frias e molhadas (como a Lua) como femininas. Se acreditava que as pessoas tinham os mesmos órgãos sexuais, diferenciados apenas pela presença de mais calor nos homens. A não-conformidade sexual era entendida como excesso de calor ou frio.

A vagina era entendida como um pênis interno, o útero como o escroto e os ovários como testículos. Isso é evidenciado nas ilustrações do corpo, de Andreas Vesalius — fundador da anatomia. Ser homem ou mulher significava interpretar um papel cultural. Os corpos eram vistos como ilustrativos, não definitivos. Como Aristóteles alegou, sexo era um princípio cósmico e os órgãos reprodutivos apenas instrumentos. Em outras palavras, enquanto hoje nossa sociedade entende o “corpo” como mais real que a “cultura”, antes do Iluminismo era o completo oposto: corpos não eram tão importantes quanto as propriedades dualísticas do Universo.

Após o iluminismo, anatomistas desenvolveram novos métodos de medir diferenças sexuais. Em 1803, o físico francês Jacques Louis Moreau argumentou contra Aristóteles e Galeno, afirmando que homens e mulheres eram anatomicamente opostes, o que foi usado para estabelecer “diferenças biológicas” entre as raças.

Órgãos que um dia compartilhavam o mesmo nome (ovários e testículos), foram distinguidos linguisticamente. Estruturas que eram pensadas como sendo as mesmas em todas as pessoas (o sistema nervoso), foram diferenciadas sexualmente.

Com o advento do novo sistema binário de sexo, homens e mulheres eram entendidos como anatomicamente diferentes e opostos. “Diferenças” que não foram consideradas como relevantes ou importantes por séculos eram agora eram fundamentais para a categorização. Fundamentar diferenças sexuais no corpo jogava com ideias iluministas de que a natureza prescrevia as leis da sociedade e que o corpo era um projeto visual para a sociedade. Laqueur diz que isso não foram avanços na ciência que levaram à criação do modelo binário de sexo, e sim a política.

Com a Revolução Industrial, a Revolução Francesa e novos desenvolvimentos na religião e no feminismo, cientistas estavam explicitamente procurando uma forma de justificar a separação sexual das esferas (a ideia de que homens deveriam ter acesso a direitos e as mulheres deveriam permanecer em casa como cuidadoras). O novo sexo binário permitiu que homens justificassem sua negação de direitos às mulheres baseados na “natureza”.

O que podemos aprender da transição de um modelo unissex para um modelo binário de sexo é que muitas vezes não se trata de diferenças reais, mas de diferenças percebidas. A percepção é formada pela cultura: nós tomamos o que vemos como um fato, mas não questionamos o que fomos ensinades a perceber em primeiro lugar. Podemos olhar com perplexidade para essa escrita de especialistas sobre calor de duzentos e cinquenta anos atrás, mas imagine o que as pessoas pensarão sobre nossa escrita “científica” sobre sexo daqui duzentos e cinquenta anos.

Tanto o modelo unissex quanto o modelo binário de sexo foram criados por homens cis para colocá-los como superiores. Nos dias de hoje, as pessoas tentam usar a categoria sexo como algo alheio à política e baseado firmemente na “natureza”. O que elas negligenciam é que foram exclusivamente homens cis brancos que definiram os critérios de “natureza”, como uma forma de naturalizar a desigualdade.

Devemos sempre questionar: quem fala pela natureza e por quê?

Como Laqueur conclui, não há natureza fora da cultura: quase tudo que se quer dizer sobre sexo (os papéis naturais do corpo) já é dito sobre gênero (ideias culturais do que homens e mulheres devem ser).

Book Report: Making Sex: Body and Gender from the Greeks to Freud by Dr. Thomas Laqueur (Harvard University Press 1992)

Texto original (em inglês): @alokvmenon

Texto complementar: A invenção do sexo biológico - identificando mitologias cristãs do gênero colonial, por Geni Nuñez

Disponível em PDF (inglês e português) em: https://drive.google.com/file/d/1fIrcOV2EyewHtvSWTMoC1Afql0D3v2Bw/view?usp=sharing

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Regiane Martins

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