O mito do poliamor não-hierárquico

Regiane Martins
4 min readMay 14, 2021

“Minha esposa e eu praticamos poliamor não-hierárquico”, disse meu namorado antes de decidirmos chamar o que tínhamos de namoro. Perfeito! Isso era exatamente o que eu queria! Um parceiro que eu poderia amar livremente e que amaria a mim e a outres livremente, sem restrições. Mergulhei de cabeça.

Eu sei, algumas coisas já estavam nítidas desde o começo: ele já tinha a chamada “parceira âncora”: casados, compartilhando casa, finanças e duas crianças. Pensei que isso não seria um problema — eu valorizo minha independência e não quero ter filhos de qualquer forma. Isso funcionaria. Nós faríamos funcionar.

Os primeiros meses foram o paraíso. Imagine cenas de um filme romântico: tomar sorvete no parque, trocar mensagens por horas, se aventurar, dançar, beijar, sexo selvagem.

Então… Apareceu a primeira bandeira. Não vermelha necessariamente, mas definitivamente laranja. Eu o convidei a um evento de sexo livre¹. Ele respondeu: “me deixe ver com Annie primeiro (a esposa, nome fictício), talvez ela queira ir comigo também.”. Fiquei confusa: nós só podemos fazer coisas assim juntos se ela não quiser ir também? Mas ela estava bem com ele indo comigo, então deixei pra lá.

Quanto mais continuávamos, mais eu percebia que “não-hierárquico” na nossa situação era um mito.

Pouco tempo depois, Annie e eu entramos em conflito e a tensão aumentou (paramos de nos falar completamente, e o relacionamento deles tomou um baque). De repente, passou a depender inteiramente do meu namorado a responsabilidade de navegar entre as necessidades e desejos de todes e equilibrar as coisas.

E quanto mais continuávamos, mas eu percebia o quanto “não-hierárquico” na nossa situação era um mito.

Eles consideraram vender a casa e se mudar para outra cidade. Não tinham nada em particular em mente, estavam vendo opções. Eu sou flexível e logo teria que procurar por um novo lugar também de qualquer forma, então era apenas uma questão de me mudar junto. Mas, apesar da seriedade de nosso relacionamento, não pude influenciar em nada sobre para onde eles/nós iríamos nos mudar. Tudo que eu tinha era uma escolha: me adaptar ou ir embora.

Cada vez mais os nossos encontros foram cancelados ou adiados de última hora. Quando agendávamos nossos encontros, era sempre verificando se se encaixava na agenda de Annie. Quando eles faziam seus planos, mais uma vez me sobrava a opção de “adaptar minha própria rotina para o tempo livre dele” ou “nos ver menos”.

A culpa era de quem? De nenhume de nós. De todes nós.

A VIDA REAL TE ATINGE COM SEUS DESAFIOS

Entre a dor e o drama, términos temporários e sapos engolidos por um longo tempo, nós conseguimos seguir (na direção do que de fato se parece bem mais um relacionamento não-hierárquico).

Eu me arrependo de ter passado por tudo isso? Não. Eu faria tudo isso se soubesse desde o início o que me aguardava? Eu não acho que faria. E é por isso que estou escrevendo isto. Para ajudar aqueles que estão prestes a abrir seus relacionamentos ou aqueles que estão envolvidos com alguém que já tinha um parceiro fixo.

Quase sempre, os casais começam sua aventura poliamorosa cheios de ideais: “ o amor é ilimitado! Todas as relações são diferentes, mas iguais!” Até que dão de cara com a realidade. Então, antes de dizer que está explorando poliamor não-hierárquico, considere as seguintes situações:

  • As férias são planejadas para todes es parceires da mesma maneira? Ou o casal que coabita faz com que es outres tenham que se encaixar em seus planos?
  • A opinião de todes es parceires sobre para onde se mudar para trabalhar tem o mesmo peso? Ou isso é decidido apenas pelo “casal âncora”?
  • E dinheiro? Há algum limite de quanto dinheiro pode ser gasto com outres parceires?
  • E crianças? O “casal não-âncora” pode ter também? É totalmente presumido que quando o casal-âncora quer ter filhes, outres parceires não precisam ser consultades, mas e parceire-âncora sempre tem que ser consultade?
  • E idas com sue parceire a eventos importantes, desde os corporativos a casamentos? Todes podem ir?

Não importa como você vai responder a essas perguntas acima, você irá ajudar a si mesme e todes es envolvides a entender melhor as coisas e ser mais aberte sobre suas respostas.

LIDANDO COM EXPECTATIVAS

O amor pode ser ilimitado, mas ter mais adultos como parte de suas decisões diárias complica a vida um pouco mais. É isso mesmo que você quer?

E se você é a pessoa se envolvendo com alguém que já está “ancorado” a alguém: você tem certeza que todes es parceires têm peso igual nas decisões?

Há muito a dizer sobre o poliamor não-hierárquico e eu tenho visto isso acontecer, embora aconteça mais em ambientes onde todas as pessoas envolvidas têm suas próprias vidas, sem arranjos financeiros, jurídicos ou de coabitação.

Mas quando o poliamor começa com um casal pré-estabelecido, especialmente aquele em que es parceires coabitam, a não-hierarquia é tão mítica quanto o unicórnio poliamoroso, aliás, sobre criaturas mitológicas, prefiro a hidra: há muitas cabeças e é melhor para ela se todas elas estiverem de acordo. E sabe de uma coisa? Isso não tem que ser algo ruim.

Às vezes pergunto a mim mesma — com tudo o que sei agora — se eu voltaria à monogamia. Não importa o quão difícil as coisas possam ser, a resposta sempre é não. Mas eu me tornei muito mais cuidadosa em lidar com minhas expectativas, assim como as de todes es envolvides.

Afinal de contas, se for para mergulhar, cheque a profundidade antes.

¹Festa onde as pessoas não vão, necessariamente, para fazer sexo, mas “se quiser, pode”. P/ saber mais: Sex Positive Parties Are Not The Same Thing As Sex Parties: https://www.vice.com/en/article/d798kk/antideutsche-sexparty-nein-sexpositive-partys-sind-keine-sexpartys

Traduzido e adaptado de: https://medium.com/polyamory-today/the-myth-of-non-hierarchical-polyamory-42a7ac524923

Disponível em PDF (inglês e português) em: https://drive.google.com/file/d/15P536FJN7f-3UfK6y999qIju0lQRiQUj/view?usp=sharing

Agradecimentos:

Teresa Ferreira e Ary Luz, obrigada pela mãozinha na tradução/revisão do texto ♥

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Regiane Martins

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